Biografia prisional


 

Talvez a folha verde de onda em onda 

De Vasco Costa Marques

Talvez a folha verde de onda em onda 
Talvez as pedras sobre os tectos meigos 
Rebelassem o ácido dos frutos

Lado a lado com esses vastos rios 
De som nocturno e turvo tumultuoso 
De incógnitos cadáveres suspeitados

«Que inaudito instrumento que oceano
Vestiria do som do seu veludo
As asas e o silêncio com que buscas
Os descarnados ramos
Pelas manhãs de grades enubladas

Não o sei eu que de rios tortuosos 
Tenho enchido o teu lenço e os recantos 
Dos bichos subterrâneos

Não o sei eu que trago fios de pântanos
Nos olhos
E vou pisando o sol desfeito nos taludes

Não o sei eu
Mas basta que repouses
Sob a delgada sombra que te aguarda»

Noticias do desencontro

de Pilo da Silva
Pilo da Silva (Manuel Piló)
 1905-1988

Hoje, ao mexer em papéis velhos, encontrei este desenho/poema, um original a carvão (acho) de Pilo da Silva  em formato de jornal até no tamanho. Aqui fica.

Quadro de Piló

Pilo da Silva - Pintor


Pilo da Silva, era assim, sem acento e como pintor, que Vasco Costa Marque se referia a Piló, seu amigo e sócio,
Este quadro, datado de 57, que conheci nas paredes da sala de jantar de VCM e está agora comigo, é uma obra de que gosto e que me parece ser boa.
E porque, na net, nunca ouço falar do Pilo como pintor, e da sua obra apenas vejo os bonecos, aqui fica o quadro.

Nota: a reprodução de côr podia estar melhor. Há uns mangentas excessivos no branco da parede. Vou tentar melhorar.

Com que então cá estamos de novo

de Vasco Costa Marques 
Com que então cá estamos de novo
um viva engatilhado na garganta,
a coçar o eczema do povo
esfarrapado-coitado-que canta...

Cá estamos de novo, amigos,
caros adversários natalícios,
enfeitados com a rosa dos perigos,
na espera de toiros dos comícios.

É que amanhã talvez não haja nada
(de Jaguar, aliás, sobe-se bem a liberdade)
e depois do carrascão de dizer camarada
guronsan que se faz tarde.


                     Mas isso “Era uma vez...”
                     sem meninos pequeninos
                     de bibinhos azulinhos
                     de xadrez
                     a marchar para o asilo
                    de mãos dadas três a três.

POESIA & POESIA

De Mendes de Carvalho
POESIA  & POESIA

Poesia pró coração
poesia procuração
poesia rissóis pra fora
poesia para a velhice
para atrasados mentais
e também prá parvoíce

poesia libidinosa
para acordar os chéchés
e pra outras coisas mais

a poesia cor de rosa
para corações doentes  
de donzelas suspirosas
rosas rosas amarelas

poesia clorofilada
para lavagem de dentes

poesia para o natal
expressamente encomendada
e poesia natalícia
pró menino dos papás
a poesia necrológica
dum velhinho trucla zás

a poesia só formal
porque o poeta coitado
tem o vício de escrever

a poesia cautelosa
porqu'isto nunca se sabe

a poesia fadunchada
e uma fadista aluada

a poesia da borbulha
que passa depois daquilo

poesia obrigada a mote
a cavalo num poeta
sentado num burro a trote

a poesia pra que conste
dum poeta muito muito
muito muito muito bicha

poesia quinquagenária
duma jovem rapariga

poesia bordada à mão
dum ancião já sem pé

a poesia ao pé da mão
a poesia ao pé do pé

poesia encapada   capada

Poesia pra tudo
poesia pra nada


In "Poemas de ponta e Mola" - 1975

Se bem me lembro



"Em Memória"
Pedro Mexia

«Se bem me lembro», dizem,
nemesianamente, mas sem igual facúndia
ou fascinação, para cair apenas
em histórias miúdas, importantes
sem dúvida mas não para quem
as ouve (nós). Memórias em mosaico,
lacunares, de avós com doenças
ou tardes absolutamente de verão
há décadas atrás, com gente que já morreu,
ou a biografia de uma cómoda,
e considerações pouco amáveis sobre uma
foto que se desprendeu do álbum.
Ouvimos, rimos de ironias
estritamente pessoais e etárias,
entendemo-nos como receptores
destas reminiscências inevitáveis,
aborrecidas e centrais,
entendemos mais ou menos
que também havemos de maçar
as «gerações vindouras» com contos assim,
acrescentando pontos e observando,
sem perceber porquê, que os netos
e os sobrinhos parecem achar
banais ou mesmo senis os pormenores
de uma certa manhã, há cinquenta anos atrás,
e sobre a qual, como já fizeram connosco,
não contamos tudo.


Pois não tem nada de surpreendente …

De Vasco Costa Marques

Pois não tem nada de surpreendente …

O preciso é estar com a nossa gente:
Um tipo falacala
um tipo cala fala
um tipo calafata
porque a folha de químico é barata
A gente ou o vizinho
a gente e o vizinho
agentovizinho

E não tem nada de surpreendente
cada vez mais lentamente
cada vez mais dificilmente
um tipo dá a volta à sala
faz a mala
e abala
sobe a escada até ao quarto
andar do quarto
independente
parando em cada patamar
que o coração estala
e sente falta de ar

O mar mar de pescar

De Vasco Costa Marques

O mar mar de pescar
quase não há
Um destino de dor e de paixão
pão de pedra da fome
enreda lentamente o pescador
lentamente o consome

E face a esta morte anunciada
ao Velho do Restelo só lhe resta
pegar no seu bordão e na sacola
e ir pedir reforma antecipada
que para ele decerto
é coisa ainda mais amarga
do que pedir esmola


O barco é a âncora

De Vasco Costa Marques
O barco é a âncora
do nauta
é a linha que
prende a nota à pauta
enquanto o som
se expande e alarga
o horizonte
que está e nunca
está
ali de fronte


Pois parolando


Vasco Costa Marques

Pois parolando
cá vou andando
tropeçalando
mas garimpando
ou ecoando
despoletando
ou implodindo
E com gerúndio
desirmanado
desirmanando

Seja bem vindo



Dorso


"O  corpo iluminado"
1987
David Mourão Ferreira

Dorso
terso
morno
denso
Corpo
nu

Horto
Berço
Torso
tenso
Torre
Tu

Desenhos (capa e interior) de  Francisco Simões
Desenho do pintor Relógio

Na rua das Tecedeiras


De Vasco Costa Marques
Na rua das Tecedeiras
Igreja de Santo André
uma tristeza gótica coxeia
na paisagem caótica de Bosh

Nem do burro do Presépio
A voz chegará aos céus?...

As damas põem mantilhas
os homens tiram chapéus

No baile em que dançam todos

"Quadras ao gosto popular"
?
Fernando Pessoa


No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar.

                            4.8.34


ABRIL MAIS TARDE


De Vasco Costa Marques
ABRIL MAIS TARDE

As portas que Abril abriu
foram fechando fechando
Martim Moniz entalado
suor e sonho sangrando
lentamente a sangue frio

Sobe um rastejar de ratos
calmas canoas no rio ?

Nascemos para amar; a humanidade


Bocage


Nascemos para amar; a humanidade
Vai tarde ou cedo aos laços da ternura.
Tu és doce atractivo, ó formosura,
Que encanta, que seduz, que persuade.

Enleia-se por gosto a liberdade;
E depois que a paixão n'alma se apura,
Alguns então lhe chamam desventura,
Chamam-lhe alguns então felicidade.

Qual se abisma nas lôbregas tristezas,
Qual em suaves júbilos discorre,
Com esperanças mil na ideia acesas.

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre;
E, segundo as diversas naturezas,
Um porfia, este esquece, aquele morre.

Moscovo 1976

De Vasco Costa Marques


Moscovo 1976


E a partir de noites tantas
Shérasade
passou a contar estórias
à múmia de Lenine
que dava corda a si própria
disparando um moinho de orações.

Enterrado no chão
detestava o longo formigueiro
com cheiro a tosquia de carneiro
e azeitonas
e o zelador
encharcado em Chanel de “free shop”
da Intourist que trazia o zum-zum
do disse-que-disse
do Kremlin sem falar (que arrepio)
das poções mágicas dos físicos...

Gostava – isso sim – da camarada
do espanador
que lhe limpava o pó
essa cheirava a verde erva
molhada e a maçãs
tudo rural.

Para falar verdade
além do mais
das estórias estava farto
depois de anos e anos
de Politburo...

Ali deitado – sem vagão
sem caminhão
sem pódio –
sentia-se minguar...

*

Ódio – que é ódio?
- um rebuçado seco
num boião de vidro
em lojeca de bairro suburbano
dessas que já nem há...

nem em Sampetersburgo

Martinho tinha o mar


De Vasco Costa Marques
Martinho tinha o mar
na ideia e no corpinho
Nasceu ou foi por assim dizer
nado a nadar
desde o amniótico
à àgua do alguidar
e à pia de água benta
onde o foram lavar
depois do grito de Ipiranga
onde atestou a sua zanga
e a determinação
em sobrenadar
nesta parcela do sistema solar
onde o tinham lançado
sem ao menos alguém lhe perguntar
se era aqui que ele queria aterrar
e em verdade vos digo
e à fé de quem sou
que aterrado ficou

"Percebia apenas nessa música o que era primitivo nela


"O galo cantou na baía" 
1959
Manuel Lopes

"Percebia apenas nessa música o que era primitivo nela: o embalo, o ritmo de remo de bote num mar docemente ondulado... Mas, de súbito, o guarda estacou. Apurou os ouvidos. Esteve assim suspenso uns segundos, entre a realidade e o sonho.
Nessa breve suspensão, escutou dentro do cére­bro um chocalhar de vozes e ecos. Toi teve a nítida sensação de que emergia do fundo como um pes­cador de pérola; e começou a cantar em voz alta;

«Sê rosto ê sol de nha pobreza
Nha rosto ê ceu que tâ varia;
Se sol bem, ta fazê claréza
Mas s‘el dexó'm, scuro tapâ...»
— Meu Deus! — exclamou Toi. Ficou a principio estupefacto. A quadra era estupenda."
..........
Galo a cantar na baía. Já é madrugada, o sol vem perto. Mas Maria é o verdadeiro sol. E como ela está ausente, a escuridão continua... Vai pensando e trauteando... A segunda quadra sai-lhe inteirinha, numa catadupa de palavras e música, como ribeiro que transbordasse do leito:
«Já canta galo na baía;
Sol câ tâ longe de somâ.
Cuma'm tâ longe de Maria
Scuro tâ continuâ...»

Para quem se interessa pela poesia medieval galega e portuguesa


Uma base de dados que "disponibiliza, aos investigadores e ao público em geral, a totalidade das cantigas medievais presentes nos cancioneiros galego-portugueses, as respetivas imagens dos manuscritos e ainda a música {quer a medieval, quer as versões ou composições originais contemporâneas que tomam como ponto de partida os textos das cantigas medievais)"



Laranjas instantâneas, defronte — e as íris ficam amarelas.



"Poesia toda"
1990
Herberto Helder

(in Última ciência - 1988)

Laranjas instantâneas, defronte — e as íris ficam amarelas.
A visão da terra é uma obra cega. Mas as laranjas
atrás das costas, as mais
pesadas, as mais
lentamente maduras, as laranjas que mais tempo demoram
a unir o dia à noite, que têm uma força maior em cima
das mesas, essas.
Operatórias. São laranjas ininterruptas trabalhando em imagens as regiões ofuscantes da cabeça.
Enriquecem o ofício sentado com um incêndio
quarto a quarto da alma. Enriquecem, devastam.
— Constelação ao vento avassalando a casa.

Não percamos, amor, um só momento


Vasco Costa Marques
Não percamos, amor, um só momento
do percurso que a vida nos concede.
Que a vida ganhe em nós um novo alento.

Sempre nos vale a pena um gesto mais,
um verso mais, um som ainda que breve.
Quanto mais repartidos mais reais.

Para vós, para vós que retomais
mais adiante o fio que a vida teve
em nós cortado, o riso de hoje vai
como um insecto alado sai
do casulo rasgado.

Café do Gelo


"Viagem contra o silêncio"
(1977)
José Carlos Gonzalez

CAFÉ DO GELO
A José Sebag
Regresso ao velho café
aqui ainda se lê sob o olhar do gerente
nas mesas de mármore negro há desenhos muito antigos
à sombra do açucareiro metálico e das moscas
que pousam em citadino rebanho sobre a chávena fria

era um tempo feliz e de esperança e nervos
um tempo de impaciência e sonhos os mais loucos
perto e longe como as miragens extremas
nos extremos desertos da ausência

a chávena de louça
com aresta verde
um bordo minado por dentes
de cariátides precoces
um resto de batôn sabe-se lá que triste
ao centro a lengalenga dos construtores de prédios
e a passagem volátil dos pederastas
pelos flocos de chantilly

era uma outra luz um outro movimento dos espelhos
noites para sair ao longo dos passeios molhados
a ver junto das calhas dos eléctricos
as faíscas azuis e brancas da soldadura autogénia
manipulada por homens de rosto fechado por máscaras
obrigados a debruçarem-se para as raízes dos prédios

regresso ao velho café e as suas novas galas
um fio de trepadeiras sobe pelas escadas
ao cimo as frigideiras de barro estrugem com o bife e o louro

regresso ao velho café com pessoas sentadas
com almas sentadas e o criado velho
chorando as coisas passadas atrás dos bastidores.

Lisboa, Novembro 63

Duende rival de Pan


O "Homem do gelo"
De Vasco Costa Marques
Duende rival de Pan
no souto de avelaneiras
ao fim dos velhos carvalhos
na doce cana soando
melancolias de fauno
ecos de vento silvando
trajectos de rudes lanças
de antepassados herança
cálcio que mata mamute
osso que não se discute
e foi encontrar albergue
no avô mumificado
na crista do icebergue


O "Homem do gelo", múmia de um homem morto há 5.300 anos e encontrada congelada nos Alpes em 1991, foi o pretexto para VCM escrever estes versos. Muitas das coisas que escrevia resultavam, como esta, de brincadeiras ou reflexões em torno de noticias que por uma ou outra razão lhe chamavam a atenção.

Le dromadaire


(1960)
Apollinaire

LE DROMADAIRE

Avec ses quatre dromadaires
Don Pedro d'Alfaroubeira
Courut le monde et l'admira.
II fit ce que je voudrais faire
Si j'avais quatre dromadaires.

Há sempre tempo para repensar


De Vasco Costa Marques
Há sempre tempo para repensar
Quando a pedra se acaba a torre recomeça
e milhares de línguas reinventam esperantos
a fogueira na noite a canção sussurrada
a mão reencontrada o cúmplice acordar

Manhã (não Amanhã) a manhã que perdura
de noite para noite se renova
a bem temperada estrofe ritmo inesperado
quem sabe como e quê quem sabe quando

O teu corpo, o teu corpo é sem estrada.


"Retábulo das matérias"
2001
Pedro Tamen

(Olhos e outras coisas)
1
O teu corpo, o teu corpo é sem estrada.
Corpo só chegada.

Húmus e sumos, calores e abrigos.
Teus olhos, teus perigos.

Lava-cota e fontana. Entremezes
teus dedos às vezes.

Vezes de colores, vezes de colares.
Terrores, sete mares.

Setestrelo também nos olhos abertos
(noites ou desertos),

perfumes, molduras, ronda posição
do braço e da mão

(morna redundância de um nome qualquer:
teu nome é mulher).

Que olhas, que esperas? Será que adivinhas
cidades não minhas?

Meus olhos CP de estação esquecida
(chegada, partida).

Encanar a perna à rã

De Vasco Costa Marques
Encanar a perna à rã
pode esperar por amanhã ...

Bem sei que a vida no charco
parece que nem avança
mas sem ser Gonçalves Zarco
nenhum mar me dá quebranto
por tanto que o mar é largo
na tormenta e na bonança

Se não dei com porto Santo
não vou por isso às do cabo
não vendo a alma ao diabo
nem vou assentar o rabo
no Endireita da Esperança

Era uma vez em 43

Há sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos...


(1946)
Mário de Sá-Carneiro

Há sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos...
A cada passo a minha alma é outra cruz,
E o meu coração gira: é uma roda de cores...
Não sei aonde vou, nem vejo o que persigo...
Já não é o meu rastro o rastro de oiro que ainda sigo...
Resvalo em pontes de gelatina e de bolores...
— Hoje a luz para mim é sempre meia-luz...
As mesas do Café endoideceram feitas ar...
Caíu-me agora um braço... Olha lá vai ele a valsar,
Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei...

(Subo por mim acima como por uma escada de corda,
E a minha Ânsia é um trapézio escangalhado...)

O futuro ergue-se tarde


De Vasco Costa Marques
O futuro ergue-se tarde
deixa sonhar o futuro
quem sabe se ele não há-de
acordar de um outro lado
derrubado um outro muro

Carlos, sossegue, o amor


(2001)
Carlos Drummond de Andrade
Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

O mar veio visitar-me

De Vasco Costa Marques
O mar veio visitar-me
ao hospital
sem hora de visita
ou diagnóstico
penduram-no num frasco
de cabeça para baixo
e rabo para o ar
e chamaram-lhe soro fisiológico

Vasco Costa Marques sofreu dois AVCs. Entre o primeiro e o segundo, de que nunca recuperou totalmente, escreveu e publicou "Algumas trovas de haver o mar" e "venham de lá esses ossos". A "experiência" da doença aparece várias vezes na sua obra, frequentemente com ironia, como é o caso deste pequeno poema.
Na foto, Cecília Costa Marques, sua mulher, na sala de espera do hospital S. Francisco Xavier no dia em que VCM aí deu entrada com o segundo AVC.

Quand je ne serai plus,

(Japão, início Sec. XI)
Izumi Shikibu
Quand je ne serai plus,
Pour avoir dans un autre monde
Un heureux souvenir
Je voudrais une fois encore
Te rencontrer aujourd'hui

Parce qu’en pensant à elle

(Japão Sec. IX)
Ono no Komachi

Parce qu’en pensant à elle
Je m’étais endormi
Sans doute ele m’apparut.
Si j’avais su que c’était um rêve
Je ne me serais certes pas réveillé

In Anthologie de la poésie japonaise classique, Poésie/Gallimard

Que farei no outono quando ardem


"As aves"
1969
Gastão Cruz

Que farei quando tudo arde ?
Sá de Miranda

Que farei no outono quando ardem
as aves e as folhas e se chove
é sobre o corpo descoberto que arde
a água do outono

Que faremos do corpo e da vontade
de o submeter ao fogo do outono
quando o corpo se queima e quando o sono
sob o rumor da chuva se desfaz

Tudo desaparece sob o fogo
tudo se queima tudo prende a sua
secura ao fogo e cada corpo vai-se

prendendo ao fogo raso
pois só pode
arder imerso quando tudo arde

E o mar fez-se


De Vasco Costa Marques
E o mar fez-se
quando a primeira nave
ao mar se fez

Tronco de árvore escavado
ou galera de escravos
aventura que rasga
azeite de acalmia...

Quantos ossos são hoje
doce areia
quanto suor salgado
às águas torna...

Quanto do mar é morte
quanto do mar Maria

Fácil


José Augusto Seabra
Fácil
é desprender as mãos numa carícia
e largá-las num longo esvoaçar
de dedos.
Fácil
é esquecer os olhos num
inesperado rosto.
Fácil
é a graça do fruto que
colhido
se abandona, húmida polpa
e sumo.

Mas fácil
mais fácil é somente reclinar
o gesto
e acordar-te.

Qual tem a borboleta por costume


Qual tem a borboleta por costume,
que, enlevada na luz da acesa vela,
dando vai voltas mil, até que nela
se queima agora, agora se consume,

tal eu correndo vou ao vivo lume
desses olhos gentis, Aônia bela ;
e abraso-me, por mais que com cautela
livrar-me a parte racional presume.

Conheço o muito a que se atreve a vista,
o quanto se levanta o pensamento,
o como vou morrendo claramente;

porém, não quer Amor que lhe resista,
nem a minha alma o quer, que em tal tormento,
qual em glória maior, está contente.

Uma pequena, quiçá abusiva, intervenção do "fazedor" do blog a propósito da data e dos tempos


Pois é, também tenho direito e acho que é preciso.
Para comemorar o 25 de Abril.
Por várias razões.
A primeira, porque me é penoso encontrar, cada vez mais, a propósito da crise e do FMI, louvores aos "velhos tempos" e ao antigo regime. Talvez, quem sabe, alguns deles venham dos a quem bastou ir "para a repartição sem gravata" que VCM refere, mas acredito que não. Há quem já não se lembre ou não tenha vivido esse tempo.
Para relembrar ou mostrar, deixo esta imagem do Portugal dos "bons tempos". E não me digam que é por ser antiga, embora de facto o seja, porque nos anos 70, mesmo antes do 25 de Abril, muito Portugal estava ainda assim, tirando, em parte, o pé descalço que foi "eficientemente" tratado por decreto e repressão policial. Eu vi. Eu estava lá.
A segunda, porque hoje - 24 de Abril de 2011 -um cronista dos nossos jornais falava da facilidade com que Portugal esquece. E eu lembrei-me, como me acontece frequentemente, da forma como uma guerra em que andámos envolvidos 13 anos nos "esqueceu". Entre aspas, sim, porque a minha opinião não é que tenhamos esquecido, é que silenciámos. Contrariamente ao que diz o cronista, acho que temos esta coisa de silenciar mais do que esquecer.
Eu andei lá, pelas guerras, em Moçambique, Cabo Delgado, o que não foi nem "pêra doce", nem, já gora, um Vietname, e não posso deixar de estranhar que, vivendo e cruzando-me todos os dias com pessoas que também por lá andaram - e fomos quase todos os que hoje temos entre 70 e 60 - nunca se fale disso. Queira-se ou não, tínhamos 20 anos e estivemos dois anos a ver morrer e, nalguns casos, a matar. E "esquecemos"?
A fotografia da mensagem anterior, que acompanha a diabrite sobre a guerra feita na época por Vasco Costa Marques e que nos"bons velhos tempos", se publicada, seria suficiente para o levar de novo à prisão, foi tirada por mim.
Íamos em "bicha de pirilau", como chamávamos a este andar em coluna que, no caso e contra o costume, está bastante "abandalhada", de armas ao ombro, em resultado de já andarmos há vários dias no mato sem sinal de Frelimo. Quem, em último lugar, olha para trás é o Cabo enfermeiro, de nome Barbosa. Um bom amigo, que hoje vive para as bandas do Seixal.
Para terminar, só quero deixar claro que não ando desesperado para falar desses tempos. Não, não esqueci mas também não penso nisso senão quando algo, muito espaçadamente, me empurra para tal. Mas acho estranho, sempre achei, e houve mesmo alturas em que me revoltava contra um silêncio que sentia imposto, antes e depois do 25 de Abril. Sobretudo depois, por estranho que pareça.
E habituei-me a ignorar uma parte importante - boa ou má não importa - da minha vida. Como muitos outros.
E cá estou, eu "fazedor do blog", num desabafo a propósito da data e de uns "versinhos" que encontrei entre os papéis de Vasco Costa Marques.

No ultramar está-se


De Vasco Costa Marques

"No ultramar está-se
para ficar!"
-Para ficar ultramado...-
diz o soldado.
......
Heróis do mar...

A muitos bastou a solução barata


De Vasco Costa Marques
25 de Abril
A muitos bastou a solução
barata
.........
De ir para a repartição
De barba por fazer
E sem gravata

Maná de cão vagabundo


De Vasco Costa Marques

Maná de cão vagabundo
quando a fome ladra à lua
e todo o seu horizonte
se concentra de repente
na matéria branca e nua
de um osso em segundo dente
de um cão do terceiro mundo

Disse Inês que me queria


(1940)
Francisco Rodrigues Lôbo
Disse Inês que me queria
No tempo que me enganava;
E eu queria, ela zombava.

Deu-me mostras e sinais
Que me amava de verdade,
Cativou minha vontade
Para assim querer-lhe mais;
Cuidei que eram naturais
Os extremos que mostrava,
E eu queria, ela zombava.

Era de mim tão contente
Que assim mesmo tinha inveja,
Que o que muito se deseja
Logo se crê facilmente;
Logo ela era tão diferente
Que em tudo o que me tratava
Eu queria, ela zombava.

Foi-me assim, zomba zombando,
Vencendo por graça e riso;
Sem nunca me amar de siso,
O siso me foi tirando;
Fiquei doido, como quando
Pelo amor, que me mostrava,
Eu queria, ela zombava.

Diziam-me os guardadores:
— Olha ora por ti, Joane,
Deixa Inês e não te engane,
Que ela tem outros amores. —
Cuidavam que eram melhores
Os que comigo tratava:
E eu queria, ela zombava.

Memória não é porta giratória

De Vasco Costa Marques
Memória não é porta giratória
em farsa de Oliude
Memória é outra estória não apenas
intriga de rival ou nota falsa
bomba de terrorista mercenário

Pode ser - mas não creio - trampolim
para qualquer Catão fora de prazo
ou hacker trapalhão
pois quando incautamente a compaginas
não mostra ser senão a sombra peregrina
que vem dizer “Ninguém!...”
à porta de serviço
e sabes bem
“ninguém” é sempre alguém
nem que seja o fantasma
que se infiltra na sala
a sacudir dos pés a poeira do Além
a tossir sobre nós ataques de asma
baralhando epopeias de cruzadas
e intrigas templárias
hoje enfim preferindo-se em eventos
de “champanhe francês” e croquetes
com fotos em revistas “jet set”

Memória para ser reconhecida
tal como a lei impunha ao reformado
terá de apresentar prova de vida
senão é fruto chocho é osso oco e serve só

para passar o tempo
enquanto não se joga o dominó

Conheço uma cidade


"Sentimento do tempo"
1971
Giuseppe Ungaretti


SILÊNCIO

Conheço uma cidade
que cada dia se enche de sol
e tudo desaparece num momento

Cheguei lá quase à noite

No coração durava o ruído
das cigarras

Do navio
envernizado de branco
eu vi
a minha cidade perder-se
deixando
um pouco
um abraço de lumes no ar indeciso
suspensos

- Ganhar o bife?


De Vasco Costa Marques
- Ganhar o bife?
- Comer o bife
com a mostarda
que a vida der.
- Morrer de farda ...
- Morrer de gripe
Como Guillaume Apollinaire ...

através da fina divisória


"Poemas escolhidos de Samuel Becket"
1970
Samuel Beckett

ASCENSÃO

através da fina divisória
nesse dia em que um filho
pródigo à sua maneira
voltou para a família
oiço uma voz
que comovida comenta
a taça do mundo em futebol

demasiado jovem como sempre

ao mesmo tempo pela janela aberta
pelos ares simplesmente
secretamente
o marulhar dos crentes

o seu sangue esguichou com abundância
sobre os lençóis sobre ervilhas-de-cheiro sobre o seu queridinho
saindo dos seus dedos repulsivos
depois cerrou as pálpebras
sobre os olhos enormes verdes espantados

ligeira
divagando
sobre o meu túmulo de ar

Tradução de Jorge Rosa e Armando da Silva Carvalho